Por Flávio A. Picchi
Vice-presidente do Lean Institute Brasil
Parafraseamos o gênio do
futebol Johan Cruyff, falecido recentemente, que dizia: “jogar futebol é muito
simples, mas jogar futebol simples é a coisa mais difícil que há”. Lean também
é antes de tudo simplicidade, mas vemos muitas transformações se afastarem
dessa essência, mantendo ou até criando complexidade desnecessária. Por que
isso acontece? Como fugir dessa armadilha?
Quando perguntado sobre o que estava fazendo,
no início do desenvolvimento do STP (Sistema Toyota de Produção, base do lean),
Taiichi Ohno respondeu: “tudo que estamos fazendo é reduzir o tempo entre o
pedido do cliente e o recebimento do pagamento, através da redução do que não
agrega valor”.
De fato, a filosofia lean pode ser definida
de maneira simples. Ex.: é um sistema que visa estabelecer fluxos diretos que
maximizem o valor para o cliente; sua premissa de gestão fundamental se baseia
em expor e resolver problemas rapidamente, por todos os níveis da organização.
Todo o resto pode ser entendido como decorrência disso.
Na essência, os princípios lean são simples e
lógicos e buscam a simplicidade como forma de eliminar desperdícios e entregar
valor aos clientes. Mas colocá-los em prática não é nada trivial. Não conseguir
se livrar dos tradicionais processos e sistemas de gestão complicados é uma das
principais causas de insucesso de implementações lean.
A primeira grande dificuldade é a mudança do
modelo mental predominante. Você já percebeu como, na maioria das empresas, a
complexidade é valorizada, ao invés da simplicidade? Talvez essa seja uma das
mudanças de paradigma mais difíceis de uma transformação lean.
Os conceitos tradicionais levam, em sua
maioria, a uma complexidade cada vez maior. Por exemplo, para programar a
produção, o enfoque tradicional usa sistemas MRP, que empurram a produção a
partir de previsões de demanda de cada produto, o que sempre gera erros
significativos. Não é raro vermos o antigo leiaute funcional, com máquinas de
mesma função separadas em setores, o que faz com que os diversos produtos sigam
rotas complicadas, com inúmeros pontos de parada. Tudo isso gera enormes
estoques de matéria prima em processo e de produtos acabados.
Para lidar com tudo isso, em geral mais
complexidade e desperdícios são adicionados, como sofisticados softwares e
modelos matemáticos, exércitos de programadores tentando agilizar produtos
atrasados, controles de estoque escaneado a cada passo do processo produtivo,
sofisticados armazéns automatizados, centenas de empilhadeiras etc. Em
ambientes administrativos, o mesmo ocorre, com processos tradicionais
fragmentados e tentativas de solução de problemas em geral através da criação
de mais burocracia e controles.
Em contraposição, lean parte da definição do
tempo takt por família de produtos e estabelece um sistema puxado a
partir das demandas reais dos clientes. Organiza células por família de
produtos com fluxo direto e lead time reduzido. Propicia a enorme
redução dos estoques, possibilitando controles simples e visuais.
Os sistemas de gestão e as estruturas
organizacionais também são em geral um emaranhado de silos, com dezenas de
indicadores conflitantes, inúmeras reuniões improdutivas para avaliar o
desempenho e justificar o não atingimento das metas. Lean desdobra os objetivos
do nível estratégico até as células e utiliza o gerenciamento diário para
corrigir os desvios assim que ocorram, com apoio da liderança no gemba.
Em algumas empresas, observamos algumas
ferramentas lean aplicadas, mas a essência dos conceitos e modelos mentais não
muda. Algumas células e kanbans não vão sobreviver por muito tempo em
uma empresa que continua predominantemente empurrando a produção. Um bom
termômetro para ver se o lean está realmente avançando é observar se os
processos e sistemas de gestão estão cada vez mais simples.
Fico admirado quando vejo pessoas fazendo um
exercício mental e matemático incrível, tentando mostrar que as antigas
soluções complexas não podem ser abandonadas. No campo racional, bastaria que
aplicassem um conceito da filosofia da ciência, conhecido como navalha de
Occam: "Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um
fenômeno, a mais simples é a melhor". Se aplicássemos um pensamento
semelhante aos exemplos acima, certamente concluiríamos que o sistema lean é
melhor. Mas é claro que as mudanças de paradigmas pessoais e organizacionais
não ocorrem com essa simplicidade.
As resistências que se expressam no campo
racional muitas vezes escondem resistências comportamentais. As mudanças
decorrentes do pensamento lean trazem insegurança e desconfiança. Será que
estávamos todos loucos trabalhando de forma tão complicada, quando poderia ser
tão mais simples? Será que esses processos simples darão conta de responder às
demandas de negócio, cada vez mais complexas? Vou perder poder se for reduzida
toda essa complexidade? Por mais que exemplos de outras empresas possam ser
úteis, as pessoas sempre resistirão com o velho escudo: “mas aqui é diferente”.
Lean precisa conquistar não só as mentes, mas
também os corações. As pessoas precisam sentir que lean funciona de forma
simples no seu ambiente específico. Isso só se consegue com a prática. Por isso
são tão importantes as implementações-piloto, os experimentos, as mudanças
rápidas e os ciclos sucessivos de PDCA. Sempre alinhados com as necessidades do
negócio e o valor para o cliente entregue por cada fluxo de valor.
Uma implementação lean de sucesso exige
conhecimento profundo de seus princípios, muita prática, experimentação e
ajuste. E uma postura questionadora.
Reflita com seus colegas: a implementação
lean na sua empresa está removendo a complexidade desnecessária de seus
processos de trabalho e sistemas de gestão?
Se tudo continua muito complicado, algo está
errado. Na dúvida, entre duas opções, sejam de leiaute, processos,
gerenciamento visual, rotinas de gestão etc, escolha sempre a mais simples.
Texto originalmente
publicado em www.lean.org.br
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