quarta-feira, 4 de maio de 2016

Lean é simples. Mas como é difícil ser simples!

Por Flávio A. Picchi
Vice-presidente do Lean Institute Brasil

Parafraseamos o gênio do futebol Johan Cruyff, falecido recentemente, que dizia: “jogar futebol é muito simples, mas jogar futebol simples é a coisa mais difícil que há”. Lean também é antes de tudo simplicidade, mas vemos muitas transformações se afastarem dessa essência, mantendo ou até criando complexidade desnecessária. Por que isso acontece? Como fugir dessa armadilha?

Quando perguntado sobre o que estava fazendo, no início do desenvolvimento do STP (Sistema Toyota de Produção, base do lean), Taiichi Ohno respondeu: “tudo que estamos fazendo é reduzir o tempo entre o pedido do cliente e o recebimento do pagamento, através da redução do que não agrega valor”.

De fato, a filosofia lean pode ser definida de maneira simples. Ex.: é um sistema que visa estabelecer fluxos diretos que maximizem o valor para o cliente; sua premissa de gestão fundamental se baseia em expor e resolver problemas rapidamente, por todos os níveis da organização. Todo o resto pode ser entendido como decorrência disso.

Na essência, os princípios lean são simples e lógicos e buscam a simplicidade como forma de eliminar desperdícios e entregar valor aos clientes. Mas colocá-los em prática não é nada trivial. Não conseguir se livrar dos tradicionais processos e sistemas de gestão complicados é uma das principais causas de insucesso de implementações lean.

A primeira grande dificuldade é a mudança do modelo mental predominante. Você já percebeu como, na maioria das empresas, a complexidade é valorizada, ao invés da simplicidade? Talvez essa seja uma das mudanças de paradigma mais difíceis de uma transformação lean.

Os conceitos tradicionais levam, em sua maioria, a uma complexidade cada vez maior. Por exemplo, para programar a produção, o enfoque tradicional usa sistemas MRP, que empurram a produção a partir de previsões de demanda de cada produto, o que sempre gera erros significativos. Não é raro vermos o antigo leiaute funcional, com máquinas de mesma função separadas em setores, o que faz com que os diversos produtos sigam rotas complicadas, com inúmeros pontos de parada. Tudo isso gera enormes estoques de matéria prima em processo e de produtos acabados.

Para lidar com tudo isso, em geral mais complexidade e desperdícios são adicionados, como sofisticados softwares e modelos matemáticos, exércitos de programadores tentando agilizar produtos atrasados, controles de estoque escaneado a cada passo do processo produtivo, sofisticados armazéns automatizados, centenas de empilhadeiras etc. Em ambientes administrativos, o mesmo ocorre, com processos tradicionais fragmentados e tentativas de solução de problemas em geral através da criação de mais burocracia e controles.

Em contraposição, lean parte da definição do tempo takt por família de produtos e estabelece um sistema puxado a partir das demandas reais dos clientes. Organiza células por família de produtos com fluxo direto e lead time reduzido. Propicia a enorme redução dos estoques, possibilitando controles simples e visuais.

Os sistemas de gestão e as estruturas organizacionais também são em geral um emaranhado de silos, com dezenas de indicadores conflitantes, inúmeras reuniões improdutivas para avaliar o desempenho e justificar o não atingimento das metas. Lean desdobra os objetivos do nível estratégico até as células e utiliza o gerenciamento diário para corrigir os desvios assim que ocorram, com apoio da liderança no gemba.

Em algumas empresas, observamos algumas ferramentas lean aplicadas, mas a essência dos conceitos e modelos mentais não muda. Algumas células e kanbans não vão sobreviver por muito tempo em uma empresa que continua predominantemente empurrando a produção. Um bom termômetro para ver se o lean está realmente avançando é observar se os processos e sistemas de gestão estão cada vez mais simples.

Fico admirado quando vejo pessoas fazendo um exercício mental e matemático incrível, tentando mostrar que as antigas soluções complexas não podem ser abandonadas. No campo racional, bastaria que aplicassem um conceito da filosofia da ciência, conhecido como navalha de Occam: "Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor". Se aplicássemos um pensamento semelhante aos exemplos acima, certamente concluiríamos que o sistema lean é melhor. Mas é claro que as mudanças de paradigmas pessoais e organizacionais não ocorrem com essa simplicidade.

As resistências que se expressam no campo racional muitas vezes escondem resistências comportamentais. As mudanças decorrentes do pensamento lean trazem insegurança e desconfiança. Será que estávamos todos loucos trabalhando de forma tão complicada, quando poderia ser tão mais simples? Será que esses processos simples darão conta de responder às demandas de negócio, cada vez mais complexas? Vou perder poder se for reduzida toda essa complexidade? Por mais que exemplos de outras empresas possam ser úteis, as pessoas sempre resistirão com o velho escudo: “mas aqui é diferente”.

Lean precisa conquistar não só as mentes, mas também os corações. As pessoas precisam sentir que lean funciona de forma simples no seu ambiente específico. Isso só se consegue com a prática. Por isso são tão importantes as implementações-piloto, os experimentos, as mudanças rápidas e os ciclos sucessivos de PDCA. Sempre alinhados com as necessidades do negócio e o valor para o cliente entregue por cada fluxo de valor.

Uma implementação lean de sucesso exige conhecimento profundo de seus princípios, muita prática, experimentação e ajuste. E uma postura questionadora.

Reflita com seus colegas: a implementação lean na sua empresa está removendo a complexidade desnecessária de seus processos de trabalho e sistemas de gestão?

Se tudo continua muito complicado, algo está errado. Na dúvida, entre duas opções, sejam de leiaute, processos, gerenciamento visual, rotinas de gestão etc, escolha sempre a mais simples.


Texto originalmente publicado em www.lean.org.br