quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Lean na saúde pode salvar vidas

Por Flávio A. Picchi


Pesquisas realizadas pelo Datafolha mostram que desde 2008 a saúde é apontada como o principal problema do país, sendo mencionada por 45% dos pesquisados, estando bem à frente do segundo colocado, a segurança, que obteve 18%.

São comuns idas e vindas entre consultas, exames, tratamentos e internações, com enormes filas e esperas, mesmo no sistema privado. O custo é extremamente alto para todos: indivíduos, famílias, empresas, governo.

A percepção evidente de tanta ineficiência e desperdícios no setor levam a uma pergunta: a gestão lean, tendo nascido na manufatura e se espalhado para os mais diversos setores, teria também contribuições a dar nesta área tão sensível a todos nós?

A resposta é afirmativa e vem sendo dada por inúmeras aplicações de sucesso em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde o colapso do sistema de saúde é também uma das principais preocupações, todos os 17 melhores hospitais do país de especialidades listados pelo US News & World Report aplicam lean há mais de 6 anos.

Isso vem acontecendo porque os gestores comprovam, no dia a dia, os benefícios concretos que essa mudança na gestão pode provocar. Lean está fundamentado na excelência em qualidade, na contínua eliminação dos desperdícios e na sistemática resolução de problemas. E pressupõe o engajamento direto das pessoas envolvidas com o trabalho na busca de tais objetivos.

No Brasil, essa aplicação é mais recente e está ainda localizada em algumas iniciativas pioneiras. Mas já começa a crescer a consciência a respeito do assunto e mais organizações estão despertando para o imenso potencial que se apresenta diante de nós. O Lean Institute Brasil tem participado de diversas dessas iniciativas, o que tem trazido importantes ensinamentos e reflexões compartilhados a seguir.

Valor para o paciente começa com a segurança 

Lean coloca foco na criação de valor para o cliente. No setor de saúde, a definição de valor passa em primeiro lugar pela segurança do paciente. Estudos mostram que quase 100 mil norte-americanos morrem anualmente em função de erro médico. No Brasil, processos por erro médico que chegam ao Supremo Tribunal de Justiça cresceram 140% nos últimos 4 anos.

Erros podem ocorrer em várias etapas do processo, por exemplo, na prescrição ou na separação de medicamentos, na troca de informações entre pacientes, na limpeza dos leitos, na maneira como se organizam kits cirúrgicos, na maneira como se planeja e executa a alta dos pacientes. O desafio lean está em tornar esses problemas visíveis e desenvolver a habilidade dos profissionais da área da saúde para resolver esses problemas.

Existem diversos exemplos de aplicação de ferramentas lean que nos ajudam nesse objetivo, como poka-yokes (dispositivos à prova de erros). Por exemplo, um software que avisa o médico sobre a perda de peso anormal em pacientes em tratamento quimioterápico. A necessidade desse aviso foi identificada no Instituto de Oncologia do Vale, de São José dos Campos (IOV), através da adaptação de uma ferramenta bastante utilizada no desenvolvimento de produtos na manufatura, a análise de modos de falha e efeitos (FMEA).

Outro exemplo interessante utiliza o conceito de jidoka: todo membro da equipe do Virginia Mason Medical Center de Seattle tem o poder (e o dever) de interromper um processo caso identifique algum problema que possa colocar em risco a segurança do paciente, o que desencadeia uma reação imediata dos responsáveis clínicos e administrativos do setor.

Lean tem ajudado também a reduzir as taxas de infecção hospitalar, parâmetro primordial para a segurança. Um mapeamento minucioso feito por um grupo de melhoria do Pittsburg Regional Healthcare mostrou, por exemplo, que os acessórios de higienização não estavam adequadamente localizados, o que levava a falhas na higienização das mãos, apesar dos extensivos procedimentos estabelecidos e campanhas de conscientização.

Diversas outras dimensões do que é valor para o paciente podem ser identificadas, como, por exemplo, não enfrentar longas esperas, e ter seu problema totalmente resolvido. O Dr. Carlos Frederico, em seu livro "Em Busca do Cuidado Perfeito", exprime bem o que é valor para o paciente, através de seis dimensões do cuidado: deve ser seguro, eficiente, eficaz, ágil, centrado no paciente e justo.

Recursos escassos não podem ser subutilizados

As discussões sobre como resolver os problemas da saúde passam, muitas vezes, pela alegada falta de recursos: faltam hospitais, equipamentos, médicos, suprimentos etc., o que é uma realidade, em especial no sistema público. Mas mesmo no sistema privado, problemas semelhantes mostram que a capacidade não está sendo suficiente para atender a demanda.

Num ambiente como esse, subutilizar recursos é inadmissível.

A aplicação de princípios lean bastante simples pode trazer ganhos de capacidade entre 20% e 40% sem investimentos.

Alguns exemplos:
  • Aumento da utilização de salas de cirurgia (um dos recursos mais nobres em um hospital) de 20% a 30%, obtidos em diversos casos, através de melhorias no fluxo de informação, preparo do paciente e da sala, fluxo do instrumental etc.
  • Redução de 30% no tempo médio de permanência em pronto socorro, através de melhorias na triagem, fluxos, gestão visual, trabalho padronizado etc.
  • Aumento da capacidade de atendimento de oncologia no IOV de 170% em 4 anos, sem aumento de área nem de pessoas, reduzindo horas extras em 40%.
  • Entrega de novos pedidos de medicamentos pela farmácia do hospital durante plantões, que era de 4h, passando para 12 minutos, no Intermountain Healthcare de Utah.
Equipes motivadas prestam melhores serviços

As aplicações lean na saúde têm gerado grande motivação entre as equipes envolvidas, resgatando o orgulho por melhorar o trabalho em equipe, resultando em melhor qualidade do cuidado. 

Isso tem sido percebido em diversas situações, como, por exemplo, no ThedaCare, que implantou o “tratamento colaborativo”. Esse tratamento funciona como uma célula de trabalho. Num leiaute onde a enfermagem tem visibilidade de todos os quartos, uma equipe de médico, enfermeiro, farmacêutico e nutricionista se encontram com o paciente e família em até 90 minutos após a internação e elaboram um plano individual de tratamento.

Mudanças como essa na maneira de trabalhar e outras melhorias, como o aumento da segurança nos procedimentos que o lean traz para os profissionais de saúde (da mesma forma que traz para os pacientes), têm resultado, em alguns casos, reduções de até 67% na taxa de rotatividade de colaboradores.

Saúde financeira também precisa melhorar

Muitas organizações do setor de saúde estão na UTI. A todo o momento, lemos notícias sobre hospitais sob ameaça de serem fechados. Os custos dos convênios particulares ficam cada vez mais proibitivos.
As aplicações lean na área da saúde têm também contribuído para melhoria do aspecto financeiro, reduzindo custos, aumentando a produtividade, reduzindo estoques, melhorando o fluxo de caixa, reduzindo não pagamentos por erros em documentos, etc.

Somente organizações com equilíbrio financeiro podem prestar um serviço de qualidade. Em vez de tradicionais cortes indiscriminados de custos, o lean pode contribuir para esse equilíbrio pela melhoria de processos e eliminação de desperdícios.

Melhorias significativas dependem de toda a cadeia de valor

Os casos mostraram resultados em diversas áreas: prontos-socorros, centros cirúrgicos, centros de terapia intensiva, setores de farmácia, ambulatórios, exames clínicos, laboratórios, processamento de guias, faturamento etc. Mas ainda temos um longo caminho pela frente. Pouquíssimos hospitais no Brasil despertaram para o poder que os conceitos e técnicas lean pode ter diante da necessidade premente de melhorarmos a gestão no setor.

Os aprendizados acumulados com essas primeiras iniciativas criam uma base para aplicações mais amplas no futuro, seja dentro das organizações, seja conectando os diversos agentes. O avanço depende da articulação de iniciativas entre todos envolvidos dessa complexa cadeia de valor: governos, seguradoras, entidades mantenedoras, hospitais, universidades e associações médicas.

Somente assim poderemos, através do aprendizado coletivo, melhorar o cuidado com a saúde em todas as suas etapas: prevenção, detecção, diagnóstico, terapia e acompanhamento, otimizando e integrando todos os fluxos: pacientes, familiares, provedores, medicações, informações, fornecedores e equipamentos.


Flávio A. Picchi é Vice-Presidente do Lean Institute Brasil 

Texto originalmente publicado em http://goo.gl/9bPHrL (http://www.lean.org.br)