Por Flávio A. Picchi
O “duplo apagão” de crise hídrica e de energia para o qual o Brasil se
encaminha pode trazer boas reflexões sobre a questão do desperdício.
Um aspecto pouco abordado refere-se à forma intensa com que reagimos aos
desperdícios nos momentos de crise, versus a maneira mais condescendente
com que convivemos com esses mesmos desperdícios no cotidiano quando as crises
não estão tão aparentes.
Hoje vemos a mídia frequentemente denunciando vazamentos de água,
cidadãos reclamando de vizinhos que removem folhas da calçada usando
mangueiras, pais chamando a atenção de seus filhos que deixam a torneira aberta
ou que não apagam a luz, especialistas apontando inúmeras soluções que poderiam
já ter sido adotadas há muitos anos.
Mas quando a chuva faz “subir um pouco o Cantareira”, o assunto parece
sumir das manchetes e da preocupação das pessoas, como se tudo já estivesse
resolvido.
A impressão que fica é a de que tudo isso é encarado como “normal” em
períodos em que a “crise” não está assim tão evidente na pauta do dia. Por que
tudo isso geralmente só vem à tona quando os efeitos dos desperdícios
cotidianos começam a ficar mais graves e irreversíveis?
A crença de que os recursos são ilimitados ou de que uma crise jamais
vai nos atingir fez com que, por décadas, as necessárias mudanças de atitude e
o planejamento de mudanças estruturais ficassem em segundo plano, recebendo
mais atenção somente nos momentos de crise.
As “crises”, no entanto, mesmo quando não estão expostas, ficam “latentes”,
pois são geradas pelo acúmulo irresponsável de desperdícios e falta de atitude
em eliminá-los.
Esse fenômeno também ocorre nas empresas, locais em que há desperdícios
de todo tipo de recurso, não só ambiental, mas também perdas de matéria-prima,
de espaço, de produtividade, de oportunidades de mercado, de inteligência das
pessoas etc.
Como, então, devemos reagir frente aos desperdícios em momentos em que
as crises e seus efeitos não estão tão evidentes?
Já sabemos como a maioria das companhias reage em momentos de crises
econômicas. Elas criam, por exemplo, “brigadas” pontuais para busca de desperdícios
que, muitas vezes, resultam em cortes indiscriminados de custos. Muitas delas,
inclusive, já estão se preparando para isso, antevendo que 2015 será um ano
bastante difícil.
Mas será que essas empresas também são, no dia a dia, “implacáveis” com
os desperdícios? Como se estivessem em crise “todos os dias”? Ou também, como
nos exemplos anteriores, encaram como “normais” e convivem com desperdícios que
vão gerar crises futuras?
Pois essa é a essência do lean: incorporar ao sistema cotidiano de
trabalho da organização a eliminação do que não agrega valor, tornando isso um
hábito para todos.
Muitas empresas já fizeram diversos avanços na implementação do sistema
lean, mas ainda estão longe de atingir esse estágio de combate cotidiano ao
desperdício.
Aponto seis conceitos básicos que precisam ser muito bem praticados
conjuntamente para se atingir esse objetivo:
1. Metas desafiadoras:
James Womack e Daniel Jones, desde o pioneiro livro “A mentalidade
enxuta nas empresas”, já aconselhavam que, para iniciar a jornada lean na
empresa, a liderança deve “criar uma crise”, caso ela já não exista,
estabelecendo metas ousadas.
Isso porque metas desafiadoras, quando são corretamente desdobradas pelo
hoshin kanri para toda a organização, mobilizam as pessoas contra os
desperdícios, sendo o motor de todo esse processo.
2. Fluxos simples:
Muitos desperdícios exigem mudanças sistêmicas, redesenho de processos,
de fluxos de materiais e informações, de layout etc. O ataque a esses
“macrodesperdícios” deve ser conduzido pela gerência, com a participação de
toda a equipe, utilizando, dentre outras ferramentas, o mapeamento de fluxo de
valor. Sem um processo simples em fluxo os grandes desperdícios ficam
escondidos.
3. Trabalho padronizado:
Muitos dizem que o diabo mora nos detalhes...
Muitos dizem que o diabo mora nos detalhes...
Pois o desperdício “micro” – ou seja, aquele que ocorre nos níveis das
operações simples e dos movimentos dos operadores – é tão impactante nos
resultados quanto os desperdícios que acontecem no nível “macro”.
Para esse combate, são necessários a total participação do pessoal de
operação, o conhecimento técnico e a utilização de ferramentas, como estudos de
movimento, desenhos de estações de trabalho, entrega de materiais no ponto de
uso, entre outros.
4. Exposição e solução de problemas na base:
A explicitação do que é normal por metas claras, fluxos simples,
trabalho padronizado e gestão visual possibilita a rápida identificação do que
é anormal. Isso deve desencadear a solução de problemas na base, através de
cadeias de ajuda, reuniões diárias, solução científica de problemas, entre
outros. Aqui, é praticada a dinâmica de eliminação de desperdícios diariamente
por todos.
5. Capacitar pessoas:
Todos os processos são realizados e melhorados pelas pessoas, que
precisam ser capacitadas, não somente tecnicamente em suas respectivas funções,
mas também em ferramentas lean, na solução de problemas e no desenvolvimento de
hábitos de identificação e eliminação de desperdícios.
6. Atitude da liderança:
O papel da liderança em todos os níveis é fundamental, do presidente ao
líder de equipe, propagando o inconformismo com os desperdícios, participando
de caminhadas pelo gemba, apoiando as cadeias de ajuda, desenvolvendo as
pessoas como solucionadores de problemas, entre outras atitudes.
Vemos em algumas empresas o erro da aplicação parcial e desconexa de
ferramentas lean. Elas aplicam muitos desses conceitos citados, mas de forma
insuficiente, desarticulada e, principalmente, sem a incorporação disso tudo a
um sistema de gestão.
Dessa forma, essas companhias jamais vão atingir um estágio de combate
intransigente e continuado aos desperdícios, feito no dia a dia e por todos, em
todas as áreas, o que protegeria a organização em futuras crises.
Não combata os desperdícios somente nas crises – isso é um grande
desperdício!
Flávio A. Picchi
Vice-PresidenteLean Institute Brasil